sábado, 29 de outubro de 2011

O Brasil seria melhor sem as ONGs?





As ONGs estão mais uma vez na berlinda. Apesar do tiroteio, é mais uma boa oportunidade de reflexão sobre o nosso papel na sociedade e também de dar uma salutar saneada no setor.

Quem são as ONGs? Seriam as organizações da sociedade civil um dos esteios da democracia, o resultado do amadurecimento da nossa sociedade, uma forma de organização e de exercício da cidadania, ou apenas um instrumento do neoliberalismo para substituir o estado e enfraquecê-lo, conforme declaração nos jornais de hoje, atribuída ao presidente do PCdoB, Renato Rabelo?

Para dar início ao debate, seria interessante uma primeira reflexão sobre como seria o Brasil, hoje, sem as ONGs...
  • COMUNIDADES: Não teríamos milhares de organizações de bairros para defender os interesses dos seus moradores, reivindicar dos governos as melhorias necessárias à sua qualidade de vida, fiscalizar as ações governamentais feitas com os impostos pagos pelos próprios moradores e se opor quando as decisões governamentais ou privadas sejam contrárias a estas comunidades.
  • MEIO AMBIENTE: Não teríamos milhares de organizações ambientalistas para defender o nosso patrimônio natural, pregar pela sustentabilidade, colaborar com o governo ajudando a fiscalizar e prevenir os crimes ambientais. São as ONGs ambientalistas que fazem a maior parte do contraponto crítico às obras e políticas públicas. É bom lembrar que foram iniciativas governamentais que causaram alguns dos maiores impactos ambientais que este país já viu, como por exemplo a Rodovia Transamazônica, o Pólo Noroeste em Rondônia, a Usina de Itaipu, refinarias, siderúrgicas, etc.
  • ESPORTES: Não teríamos milhares de organizações esportivas, sejam elas clubes privados - inclusive os que arregimentam milhões de torcedores - ou ONGs criadas por atletas e outras iniciativas comunitárias que ajudam a oferecer acesso aos esportes para muitos milhares de jovens que, por falta de uma política de educação dos governos, não encontram estas oportunidades na escola. É bom lembrar que o COB - Comitê Olímpico Brasileiro, as federações esportivas também "são ONGs".
  • ARTES E CULTURA: Não teríamos as organizações culturais que fomentam e promovem as artes e a cultura nacional.
  • CIÊNCIAS: Não teríamos organizações acadêmicas, técnicas e profissionais que ajudam no desenvolvimento e na difusão de inúmeras práticas e do conhecimento científico-tecnológico, colocando-os a serviço da sociedade. 
  • AGRICULTORES: Não teríamos organizações de assistência e extensão rural, ou as organização que articulam os trabalhadores sem terra, sem as quais nada teríamos de reforma agrária neste país. 
  • DIREITOS HUMANOS: Não teríamos organizações dedicadas aos direitos humanos, que fiscalizam principalmente as ações do próprio governo na área da segurança.
  • SEGURANÇA: Não teríamos as ONGs que prestam serviços de proteção às testemunhas. O "Disque Denúncia" é uma ONG.
  • GASTOS PÚBLICOS: Não teríamos as organizações que fiscalizam os Poderes da República, cobram a transparência das instituições públicas, a qualidade dos gastos e a legalidade das ações, denunciando os desvios de dirigentes eleitos ou nomeados da administração pública, políticos, magistrados, etc.
  • TRAGÉDIAS: Não teríamos as organizações de ajuda humanitária a prestar socorro nas situações de desastres e contingências (Exemplo: Cruz Vermelha, Médicos sem Fronteiras, etc). 
  • CRIANÇAS: Não teríamos organizações de assistência social como a Pastoral da Criança e tantas outras que, com a ajuda das igrejas, conseguem uma enorme capilaridade na sociedade e salvam vidas!
  • ECONOMIA SOLIDÁRIA: Não teríamos as cooperativas urbanas e rurais que reúnem trabalhadores e promovem a geração de renda.
  • EDUCAÇÃO: Não teríamos as organizações mantenedoras de instituições de ensino, as filantrópicas de atendimento à saúde, como as Santa Casas, etc...

Pensando num passado não tão distante, como teria sido o enfrentamento à ditadura e a redemocratização do Brasil sem as organizações da sociedade civil, como a OAB, a ABI e tantas outras? E pensando no futuro próximo, como seremos capazes de construir um verdadeiro legado social para os grandes eventos esportivos que se aproximam (Copa e Olimpíadas) sem a presença e a participação das ONGs? O governo, hoje focado nas obras, daria conta de tudo?

Enfim, poderíamos incluir na lista mais uma infinidade de serviços prestados pelas ONGs à sociedade brasileira. O que importa é que pode-se afirmar, com certeza, que sem as ONGs o Brasil seria muito diferente e muito pior.

ONGs x OG?

Primeiro, é importante diferenciar estado x governo. O estado é a instância reguladora e gestora da nação, instituído pela sociedade e de caráter permanente. O governo é a equipe escolhida pelo povo, através do voto, para gerir o estado por um determinado período. E as ONGs? O associativismo é um direito constitucional garantido a todos os brasileiros, como está expresso na Constituição Federal, Art. 5:

TÍTULO II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPÍTULO I - DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;
XIX - as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;
XX - ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

Numa democracia e no estado de direito, as ONGs podem ser aliadas do estado e dos governos ou podem ser divergentes. Podem atuar mediante apoio financeiro governamental ou não: a grande maioria não atua com recursos públicos. Muitas políticas públicas implementadas pelos governos tem a origem nas ações propositivas das ONGs ou são aperfeiçoadas a partir de contribuições e críticas destas organizações. Muitas, dedicam o seu esforço ao papel cidadão de manter uma vigilância crítica das ações governamentais.

Nenhum governo alcança a unanimidade e por maior que seja a sua popularidade, o contraditório é salutar e necessário, até para fortalecer as situações de consenso. ONGs não são o estado, assim como não possuem e nem almejam as prerrogativas do governo. ONGs não substituem o estado ou o governo, mas podem ser aliadas estratégicas. Mas, uma coisa é certa: estado sem sociedade civil organizada é autoritarismo!

As ONGs e a moralidade

Outra discussão é quanto à legitimidade e a moralidade das ONGs. Bem, num país em que cada dia surgem novas denúncias de irregularidades e desvios éticos e morais de ...

- políticos picaretas,
- governantes e gestores públicos picaretas,
- juízes picaretas,
- padres e pastores picaretas,
- policiais picaretas,
- empresários picaretas,
- professores picaretas
- e tantos outros cidadãos picaretas,
... por que então a surpresa com a descoberta de ONGs picaretas? Elas existem sim e não são poucas.

Há que se alertar também que praticamente em todas as denúncias surgidas contra as ONGs existe a participação de políticos, candidatos a políticos, partidos ou alguém da esfera governamental. Aliás, não é de hoje que certos políticos descobriram que "podem se dar bem" se aparelharem organizações ou criarem pseudo-ONGs. É o caso dos famigerados "Centros Sociais": máquinas eleitoreiras ligadas aos gabinetes de certos parlamentares, cuja única finalidade é promover o clientelismo, facilitar o trabalho "assistencialista" e colecionar votos fáceis enganando o povo.

Como melhorar?

Há que se pensar em medidas saneadoras e estruturantes que estimulem um compromisso cada vez maior do cidadão com as causas públicas e coletivas, eliminando as sombrias práticas de favorecimentos e apadrinhamentos políticos. Há também que se superar os entraves e os múltiplos meandros burocráticos, incapazes de prevenir as irregularidades e que punem aqueles que de fato desejam fazer.

O foco da discussão deve estar:
- nas brechas da lei que permitem as irregularidades,
- na impunidade proporcionada por uma Justiça incapaz de coibir a corrupção
- e no aperfeiçoamento da nossa prática democrática: que se avance de uma democracia apenas representativa para uma democracia participativa e mais cidadã.

Um dos caminhos apontados pelas próprias ONGs é o estabelecimento de um Marco Legal para o Terceiro Setor, fundamental para a regulação do setor e prevenir as irregularidades. Durante a campanha eleitoral, a presidente Dilma comprometeu-se com grupos de ONGs a promover este debate e a implantar o Marco Legal.

Por fim, é indispensável que se faça uma profunda investigação sobre os convênios com repasses de recursos públicos para as ONGs. É inadmissível que poucos malfeitores maculem a imagem de todo um esforço que mobiliza centenas de milhares de profissionais, voluntários e militantes honestos, que dedicam as suas vidas às causas que acreditam. Que aqueles que cometem crimes contra a administração pública sejam punidos, estejam eles nas ONGs, nos escritórios corporativos, no governo ou em qualquer outro lugar.

As ONGs e o dinheiro público

As primeiras declarações atribuídas ao novo ministro do Esporte, Aldo Rebelo, e ao dirigente do seu partido - o PCdoB - que as ONGs não devem receber dinheiro público, causam estranheza. É isso que pensa também o governo Dilma e o partido governista majoritário, o PT, com tanta tradição no movimento social?

Se esta for a posição, é provável que se mate por inanição vários segmentos da sociedade civil, até mesmo certas entidades do movimento estudantil - como a UNE - tão próximas ao próprio PCdoB e que tem recebido substanciais recursos governamentais.

Nem sempre depender de repasses de recursos públicos é uma escolha das ONGs. Alguns setores como a cultura e o esporte, hoje vivem dos mecanismos de renúncia fiscal, criados por iniciativa do próprio governo. E estes mecanismos acabaram por se mostrar tão atraentes para os patrocinadores que, praticamente, não há mais como se captar recursos na iniciativa privada que não seja através dos instrumentos de incentivos fiscais. Estamos diante de uma distorção. Não acho este o melhor dos mundos, nem para as ONGs, nem para o governo, nem para a sociedade.

Quanto à proposta de se selecionar organizações para convênios com o governo através de processos licitatórios públicos, concordo e acho uma ótima medida moralizadora. Caso praticado com lisura, o processo seletivo transparente poderá ser o fim das irregularidades envolvendo certas ONGs apadrinhadas pelos partidos, pelos políticos e pelos governantes.

Caso as seleções públicas sejam adotadas como prática, alertamos que é preciso ter atenção com as inúmeras e pequenas organizações pelos rincões deste país, legítimas e importantes no contexto local. Estas podem ter dificuldades de enfrentar a concorrência de outras organizações, melhor estruturadas, mais profissionalizadas e mais habituadas a conviver com as exigências burocráticas dos órgãos governamentais. Temos que ter cuidado para que não surja uma nova leva de ONGs, nascidas de prestadores de serviços profissionais travestidos de organizações da sociedade civil.

Enfim, sabemos que não há solução fácil, mas ela não chegará sem que haja uma ampla discussão na sociedade. Acho que o momento é bom.

Resta aguardar que o governo Dilma esclareça que relação pretende ter com as ONGs. Estamos certos que será restabelecido o caminho democrático de atuação em conjunto com a sociedade civil e não em conflito com ela.

Axel Grael



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Um comentário:

  1. A discussão é longa, mas tem que ser iniciada. O momento é de arrumar a casa... há diversas irregularidades, mas não acredito que o governo interrompa o bom convivio com as ONGs.
    A regulamentação é necessária pelo crescimento de ONGs de fachada e que buscam somente o dinheiro publico, sem beneficios reais para a sociedade com um todo.
    Temos atualmente diversas ONGs que favorecem crianças carentes, crianças especiais, que levam cultura, educação e esporte para diversas comunidades. Temos atletas de alta performance iniciados em ONGs.
    Os bons continuam sendo MAIORIA, e são esses que reconhecidamente já fizeram muito pelo povo carente que precisa ser beneficiado e incentivado pelo governo.
    Abs.

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